sexta-feira, setembro 11, 2009

Oficina de bonecos

Quando lecionei como professor na Escola de Artes Casulo em 2008, tive muitos momentos bons. A escola propunha direcionar os trabalhos com os alunos de acordo com uma temática. Na época estávamos homenageando Ariano Suassuna e cada professor deveria criar uma forma de relacionar sua disciplina com os elementos da cultura sertaneja.

Através de pesquisas descobri que Ariano quando menino se encantava com os bonecos mamulengos nas feiras. Não pensei duas vezes em criar uma pequena oficina de bonecos com os alunos.



Como a escola trabalhava com a produção de papel reciclado, fizemos as cabeças dos bonecos com o papel picado e cola. Cada rosto foi moldado de acordo com o gosto de cada aluno.



Depois de secas ao sol, as cabeças dos bonecos foram pintadas. Os seus pequenos vestidos também passaram pelo processo do estampamento através da pintura com látex. Ensinei aos alunos a fazerem os cabelos com barbante colorido. Pouco a pouco foram surgindo São Francisco, o capeta, galegos, nêgo-lôro, etc.

Alunos da Escola de Artes Casulo -Palmácia 2008

Em direção à expressão autônoma.
















As questões abordadas pelos alunos nas aulas de Artes Visuais como “pintura bonita” e “pintura feia” levaram-me a compreender que as indagações de alguns alunos sobre a estética pictórica não estavam ligadas só ao aspecto da beleza, mas a preferência de uma leitura visual em que a pintura e sua representação remetessem a leitura de mundo.

ROSSI [1] observa que o aluno estabelece esta relação quando demonstra acreditar que a imagem é, literalmente, a representação do mundo, das coisas que existem e acontecem. Para os alunos da escolinha de artes era muito mais fácil aceitar pinturas em que eles pudessem entender o que estavam vendo na maioria das vezes pinturas cujas imagens lembravam o mundo em que viviam.

Como se isso não bastasse, os alunos foram estimulados em experiências com professores anteriores a reproduzir pin-turas de artistas já consagrados, com o tempo os alunos compreendiam que as reproduções eram mais seguras para alcançar uma aceitação das pessoas, já que remetiam às lembranças de “figurinhas conhecidas” vistas em algum livro de artes.

Esta acomodação imagética teria de ser vencida em etapas proporcionais. Teria que recorrer ao princípio de tudo, às linguagens visuais viriam se apresentar de forma lúdica, do contrário muita técnica desestimularia os alunos.

Primeiros passos.

Resolvi abordar a cada aula, junto aos alunos, questões importantes para a composição espacial de uma pintura. Construímos relações dialéticas entre os elementos da linguagem visual: linha, plano, textura, cor, ponto, etc., na espe-rança de começarmos a trilhar em direção a uma criação autônoma e individual dos pequenos discentes. Trabalhei aspec-tos para a composição pictórica como harmonia espacial com linhas verticais, horizontais, diagonais.

DONDIS [2] nos diz que a utilização dos componentes visuais básicos como meio de conhecimento e compreensão tanto de categorias completas dos meios visuais quanto de obras individuais é um método excelente para explorar o sucesso potencial e consumado de sua expressão. A princípio o método com alguns desses componentes visuais nas composições não despertaram a potência criadora dos pequenos alunos, pois não foram bem recebidas pelos mesmos, talvez por não estarem acostumados a criar sem a referência de imagens. A primeira vista, o caminho para a poética da pintura abstrata mostrava-se árduo, era hora de tentar outra tática.



Para aliviar a má recepção da experiência pelos alunos resolvi utilizar o elemento visual em que a criança entra em contato com a sua primeira expressão artística: a cor. Utilizando-me de pranchas cromáticas (fig.1), demonstrei por par-tes, as relações entre contrastes e tonalidades, relações entre as cores complementares, cores primárias, secundárias e terciárias. Os alunos deveriam produzir “famílias” cromáticas, por exemplo entre o azul e o amarelo criariam tonalidades de verdes, entre o vermelho e o amarelo criariam tons de laranjas, entre o vermelho e o azul criariam tons de violáceas e assim por diante.


Fig.1:Prancha utilizada para explicar a relação entre as cores.

RICHTER [3] cita que a cor toca o ser dinâmico das coisas, expondo-a como eterna fluidez e mudança, um enigma sensorial quase mágico, onde nada é fixo no constante movimento do gesto sobre as cores. Cada cor que vemos está em nós e em torno de nós, e em ambos os lugares é vida, é atualidade ou atualização, por isso não seria difícil para os educandos associarem a produção das pranchas de cores com as cores do mundo que os cercavam todos os dias

Senti que esta etapa da experiência agradou mais aos alunos, já que eles aprenderam a fazer cores que só encontravam prontas nos potes de tintas. Ao mesmo tempo em que faziam suas pranchas eram indagados por mim sobre as sensações (alegria, tristeza, calor, frio, calma, agitação, etc.) que as cores despertavam neles. Após uma familiarização com as cores, parti para uma reflexão sobre o uso expressivo das cores na pintura. Relatei que o artista também pode se expressar sem o uso de figurações como casas, barcos, pessoas ou paisagens simplesmente usando cores e gestos.

Com a ajuda de uma televisão e de um aparelho de DVD mostrei algumas imagens em que Bandeira abusa da gestualidade em suas pinturascomo no exemplo abaixo (fig. 2)


Fig.2: Antonio Bandeira. Sol sobre paisagem -1959

Em outra aula voltei a utilizar a televisão para mostrar cenas do filme “Pollock” (fig. 3) foquei em uma das cenas em que o pintor passava horas olhando para a tela em branco e isso despertou incômodo em alguns dos pequenos que indagavam: Por que ele não pinta logo? Eu expliquei a eles que na pintura abstrata não olhamos para um objeto para pintarmos, temos que usar o nosso coração para imaginarmos a pintura, por isso Pollock estava demorando para pintar. Outra cena que marcou a admiração dos meninos foram as que mostravam a forma como o pintor “despejava a tinta” na tela com a ajuda de uma vareta, isto contagiou alguns meninos que antes de verem as cenas do filme, só experimentavam a pintura feita com ajuda dos pincéis.


Fig. 3: Cena do filme Pollock (DVD filmes)

Aproveitando a abertura do momento, coloquei algumas folhas sobre a mesa e propus que eles tentassem fazer suas composições sem utilizar o pincel. Junto as folhas deixei alguns potinhos com cores, rolinhos de esponja, palitos, canudos de caneta, etc. Disse-lhes que brincassem com as cores levando-as através do papel em várias direções como haviam visto nas aulas de composição espacial.

RICHTER [4] revela que a ação lúdica acontece quando a criança, curiosa, não se conforma em só reproduzir aquilo que conhece e passa a ensaiar outros modos de fazer, transformando tanto o já conhecido pela novidade que conquistou quanto a si mesma pela a ação transformativa que realizou. A novidade emerge de um pensamento intuitivo e totalmente aberto à novidade, curioso e intrépido, caracterizado pelo o intenso entrelaçamento entre o afetivo e o cognitivo, pois transformar um exercício técnico em algo lúdico parecia ser a melhor coisa a fazer, a intuição dos garotos emergiria com fluidez durante o processo de criação. Já instigados pelo prazer e pela curiosidade, os alunos produziam sem se preocuparem em saber se suas pinturas tinham de ser aceitas por se parecerem com algo inteligível para outros.

Houve entre todos os alunos uma pré-disposição para um novo passo para o conhecimento, uma renovação do fazer que essencial para a nossa vida como expõe OSTROWER[5]: compreendemos, na criação, que a ulterior finalidade de nosso fazer seja poder ampliar em nós a experiência de vitalidade. Criar não representa um relaxamento ou um esvaziamento pessoal, nem uma substituição imaginativa da realidade; criar representa um intensificação do viver, um vivenciar-se no fazer(...)

Como professor, não sabia dizer se a experiência com o abstrato ultrapassaria a questão do laissez-faire, ou seja, deixar fazer sem critérios, pois a princípio não saberia qual seria a reação dos alunos. Afinal, os meninos podiam ver Bandeira e Pollock como produtores de borrões. Sim, este era um passo que podia botar tudo a perder, a leitura de uma criança é muito diferente da leitura de um adulto, isto é um fato comprovado até pela literatura universal, lembremos de uma passagem do livro O pequeno príncipe na qual uma criança tenta demonstrar aos adultos que seu desenho não é um chapéu e sim uma jibóia que engolira um elefante.
Mas terminou tudo bem, os pequenos não experimentaram só um envolvimento emotivo mas também racional, quer fosse na construção das camadas pictóricas com cores complementares como o azul e o laranja (fig.4) quer fosse na escolha dos instrumentos. Alguns manipulavam a tinta com um palito ao modo de Pollock (fig.5)


Fig.4: Assoprando as cores


Fig.5: Action painting

Fim da caminhada.

Uma semana se passara e após todos os trabalhos concluídos cheguei mais cedo na sala para organizar uma pequena exposição antes dos alunos chegarem. Separei os trabalhos em três categorias:

• Pinturas com vareta. (fig. 6)
• Pinturas com canudo. (fig.7) e (fig. 8)
• Pinturas com dedo. (fig.9) e (fig. 10)



Figura 6

Figura 7



Figura 8


Figura 9


Figura 10

Coloquei as pinturas fixadas na parede e desmontei a mesa em que trabalhávamos deixando somente as cadeiras dentro da sala. A idéia era simular uma pequena galeria, fechei a porta e fiquei esperando todos chegarem para ver qual seria a reação deles.

Achei importante esta nossa conversa sobre os trabalhos fechando o ponto final na formação triangular (Teoria, prática e crítica). Este debate pertinente dentro de um processo criativo era essencial para uma verificação constante entre dois pontos: De onde partimos para criar? E para onde queremos ir com a nossa criação? Aprendi isto com minha professora de desenho Tânia Kacelnik do antigo CEFET-CE. O objetivo da conversa era uma reflexão sobre o processo de criação deles. Claro que eu não estava esperando que eles conversassem abertamente sobre o uso da linguagem visual em suas pinturas, afinal, eles tinham entre sete e onze anos de idade.

Quando os alunos iam chegando aos poucos, deixei-os a vontade, eles mesmos se avaliavam ao comparar seus trabalhos às pinturas dos outros alunos. Enquanto olhavam, formulei algumas perguntas para fazê-los pensar sobre a aprendizagem que eles tinham adquirido durante a oficina.

As questões foram:

• O que sentiram ao pintar sem o pincel?
• Vocês ainda acham que precisam olhar para modelos de pintura para pintarem?
• Vocês ainda pensam na pintura abstrata como algo esquisito, estranho?
• Escolha a pintura de um colega e diga por que gostou?
• Por que vocês escolheram algumas cores que estão em seus trabalhos?
• O que sentiram quando estavam pintando?


Conclusões

Todos os alunos concordaram que conseguiram pintar “bonito” mesmo sem o pincel.
• A pintura abstrata não parecia mais estranha para eles, por que agora eles sabiam que “o fazer” envolvia “um sentir”.
• Independente dos instrumentos que usaram todos gostaram da experiência.
• Todos gostaram de levar as pinturas para casa.
• Escolheram certas cores por que elas são “fortes”

Segundo as respostas dos alunos, acredito que a meta proposta com a oficina de pintura abstrata tenha sido alcançada, pois eles tiveram uma grande abertura na aprendizagem com este gênero de pintura.

Antes da oficina todos os educandos julgavam a pintura Abstrata como “feia” ou “esquisita” preferindo trabalhar antes da oficina com a pintura figurativa contida nos livros da escola. A produção enriqueceu o lado cognitivo dos educandos através do desenvolvimento do senso crítico, durante o processo criativo, ensinandoos a ter confiança em suas escolhas.